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Vestido de Veludo

Ai de nós se não criássemos. A menina olha o riacho, repara nas ondulações constantes na água que corre mansa. Ali está: o riacho, a terra úmida e fria, a água roçando pedras antigas. Ela toca a água. A vibração da correnteza muda. A água subitamente fica turva. O friozinho fresco atravessa os poros da tenra mão que quer absorver o mundo. Ela sente e vê o correr das moléculas mudar de direção, fugindo do obstáculo macio que tudo sente. O frio da água a faz sentir melhor o conforto de seu corpo trajado. Os sapatos dominicais, as meias brancas, o vestido de veludo verde escuro. O riacho, com sua turbulência nas entrelinhas, com sua viscosidade ancestral, lhe revela a menina que é, com toda a indumentária que lhe reveste. O riacho-espelho, professor mudo e corredio, é o mundo todo naquele momento, e é também agora parte da menina.

Tudo o que tocamos nos transforma. Somente o que é radicalmente diferente nos permite sentir o devir, por óbvio. E o devir é conhecimento e, por sê-lo, é arte. A menina e o riacho são poesia em sua mais bruta forma. Este lhe banha a alma enquanto ela faz cócegas em seus peixes. Um toque tão íntimo quanto o do riacho é aquele capaz de nos fazer acender ideias.

Há inúmeras cartilhas sobre riachos. A menina as aprendeu na escola. A água em estado líquido corre em razão da ondulação do terreno, por força da gravidade. A pressão em seus minúsculos dedinhos é proporcional à ondulação do terreno e à densidade da água. É preciso reconhecer e categorizar sensações e pensamentos, enquadrando-os em caixas de conhecimento pré-ordenado, em disciplinas científicas capazes de explicar a vida. Essa é a primeira ideia - a que vem a lume para a maioria dos Humanos, dispostos enquanto seres categorizáveis e civilizados. O mundo como uma grande orquestra em uníssono.

Para eles - os Humanos -, formular uma ideia é criar uma não-ideia da ausência, é agarrar-se a antíteses como provas incontestes da esperança de encontrar luz na escuridão. Seu espírito se compraz dessas constatações mesquinhas, que aliviam o temor da percepção do inclassificável. A civilidade de categorias binariamente opostas acalenta seu coração. Algumas têm um toque de êxtase espiritual, como o bem e o mal, tão fundantes da infantilidade inocente do nosso julgamento sobre tudo. Outras se valem da tactilidade mais primária a fim de adormecer dúvidas demasiado profundas: preto e branco, liso e áspero, luz e sombra. E ali, agarrada a esse delírio associativo, a dupla pronominal produtora do abjeto: o eu e o outro, preventivamente resguardados de si, higienicamente circunscritos em cercas e gaiolas. A Humanidade segue procurando na carne a definição do espírito, e vice-versa. E disso parte-se para outras quinquilharias de pensamento: o intrínseco e o extrínseco. Olha-se para o céu para melhor tocar as janelas rústicas de nossas casas quentes. Estrelas e galáxias orquestram luzes vibrantes que reverberam em nossas células e poros. Tudo como uma ondulação agigantadora do mesmo, do umbigo primordial daquele que quer conhecer. Muita poesia tem sido feita assim. E quem há de julgar? O ser que cria, ponto irradiador de suas criaturas, pretende que suas entranhas movimentem a bílis-mundo. E que grande poder dão para suas entranhas!

Deleuze e Guattari (1995) falam do decalque, um conhecimento monolítico advindo de uma unidade central. Trata-se de um desdobramento rígido da unicidade, produtor de multiplicidades homogêneas. A menina, quando carrega suas cartilhas escolares na bolsa, está repleta desses saberes arbóreos - com troncos e raízes firmes no solo -, resquícios aristotélicos do Ocidente, constructos mercadológicos de produtividade, megalomaníaca Ciência que tudo pode e tudo vê. Com as cartilhas na bolsa e as figuras espectrais de seus professores em seus ombros, ela salta pelo riacho examinando cada detalhe, observando tudo e tanto que não se dá conta de que seus olhos e suas mãos não são capazes de desvencilharem-se dela mesma.

Ah, Humanidade maldita que nos separa de pedras e peixes… Desavergonhada, finge não saber que a busca pelo que está fora nada mais é que cegueira interna, mera confusão egocentrada. A busca pelo que está fora - se feita assim - com cartilhas de decalques - se esquece que há uma menina de sapatos, meias e vestido de veludo. O corpo torna-se instrumento; uma luneta ou um microscópio. Mas aquele vestido era tão lindo e aquelas mãozinhas demasiado macias para serem apenas instrumento.

A menina que mete a mão no riacho não é instrumento oco. É prolongamento. A menina é a arte. Ela toca a água, mistura-se com ela e com tudo que já lhe misturara antes. Quando entra em cena, a experimentação implode o decalque do unívoco: é livre para impulsionar as incongruências, destroçar paralelos, desfazer simetrias, torcer ao avesso contrários. Ela rompe as barreiras dessa Humanidade tóxica. Torna-se Terrana - no dizer de Latour (2014) - ente senciente, consciente, dependente. Ela amalgama-se ao riacho. E pinta riachos no céu, e declama riachos no ar. E o riacho, de tão riacho que é, torna-se riacho e deixa de sê-lo, mergulha pela floresta ao redor, torna-se árvore também, torna-se terra e pedregulhos e formigas. Espraia-se pelas veias do solo, pelas raízes que o circundam. Simpáticos macacos que lhe chegam perto também são riacho, com sua água a refrescar a glote, com seu mijo a descer pelas corredeiras.

O instante é paralisado ao mesmo tempo em que se prolonga para sempre. A menina ainda está ali, claramente pousada ao lado do riacho, sentindo, sendo, aprendendo e criando. Ela parte do múltiplo, ou melhor, parte do próprio riacho em direção a qualquer coisa que possa ser imaginada. Aliás, ela parte do riacho e tudo no que ele é implicado: o riacho em si e seus desdobramentos, suas metástases de ser-riacho, seus entroncamentos de tudo-o-que-não-é-riacho.

E esse é o primeiro ponto, mas não é tudo. Há mais o que dizer da menina e de todo o entorno.

A floresta escura, imersa na sombra das copas das árvores, tão verde quanto o vestido, úmida e gelada após uma chuva invernal, é tão real quanto intangível, pelo menos para nós, que optamos por decifrar signos em papeis ou em telas. Abstrações significativas, sons exasperados, traços delicados e grossos, texturas e aplainamentos, simbioses e sobreposições, intercâmbios sucumbidores, metáforas e imagens belas ou grotescas de tudo que poderiam representar. Representar não - sejamos precisas - tecer. Realidade, tangibilidade, concretude num mundo que se desfaz e que resiste numa inexistência significativa, ou em reflexos disfóricos de si mesmo.

Inventei a floresta com sombras concretas das sobras de ideias do que seja uma floresta - para mim e para você. Inventei um riacho com sombras de ideias das sobras concretas do que seja um riacho - para nós. Apostei algumas horas de trabalho na ideia de que te levaria para minha floresta encantada. Teci uma cena de cores, formas e tons com riscos monocromáticos. Eis o porquê de ser a floresta encantada.

A menina é a arte na mesma medida em que eu sou a arte. Rego plantas para transpassar outras plantas. Coloro árvores e vestidos para provocar luminosidades em substantivos abstratos. Com mandinga - uma ilusionista -, volto seu olhar para onde me apraz. Só pelo prazer de lançá-lo longe, à deriva, buscando outro platô onde possa fugir (Deleuze & Guattari, 1995), onde seja possível tecer-se Terrano, mundano, terrente, simplesmente porque torna-se outro. Ocupar em infinitas dimensões as continuidades das imagens que criamos. Ai de nós se não criássemos.


DELEUZE, G. & GUATARRI, F. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.

LATOUR, B. Como distinguir amigos e inimigos no tempo do Antropoceno. Revista de Antropologia USP. 2014.

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