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  • jffernandes0

Covardia

Há muito tempo atrás, a morte era só uma alegoria da vida, uma abstração que tinha muito mais de ideal que de uma preocupação factual. Pensava sobre ela como um acontecimento inevitável e turvo. Teorizava sobre ela. Brincava com a não existência como uma criança, frágil, descomprometida e ignorante. Era fácil.

Depois veio o impacto. A percepção súbita de que tudo pode ruir em segundos. Foi a época do pânico generalizado. Não era nem medo, era pavor mesmo, irrefletido, imaturo. Até que se tornou essa paralisia, como quando vemos nos filmes as pessoas paradas, olhando para a catástrofe que se aproxima, incapazes de qualquer tentativa de defesa.

Essa inércia desestimulante irrompe em alguns - covardes como eu, quiçá - quando somos instados a lidar com o inevitável. Como se, diante do problema, nada mais restasse a fazer e, portanto, nada deveria ser feito. Passei a lidar assim com a ideia da morte, uma roleta russa da qual emanam suspiros de alívio ocasionais após cada certificação de que o coração ainda bate.

Alguns podem reclamar a inadequação de se viver assim. Pode ser. Mas talvez seja em razão mesmo do medo que permaneço atenta - algumas vezes forte, outras não. O medo me faz preencher cadernos e telas em branco. O medo me motiva a transformar abstrações imagéticas em abstrações verbais que, ao menos, têm a delicadeza de serem impressas em signos palpáveis. E é por isso que escrevo hoje sobre a morte. Não é apenas uma ideia banal de que a escrita permite que se desvie o olhar do inevitável, fazendo com que o tempo passe mais rápido - minha covardia não é tão grande assim. É mais a possibilidade de forjar estruturas, tornar sensíveis coisas que ainda não são - porque ainda não lançadas ao mundo -, restando a esperança de que o inevitável seja ao menos surpreendido.

Esta é uma ode torta à escrita, um subterfúgio que - ao contrário do poeta - é desavergonhadamente covarde.

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